Holanda e pedofilia
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Holanda e pedofilia


Desde os primeiros dias de Abril, internet enlouquece com a ideia de que na Holanda a pedofilia teria
sido legalizada como resultado dum acórdão do Tribunal de Recurso.

É isso que se passou?
A resposta é "Não". Na Holanda a pedofilia continua a ser um crime, tal como a difusão de imagens (fotografias, vídeos) ligadas ao âmbito pedófilo.
E ainda bem.

Todavia...
Os factos

Em 27 de Junho de 2012, o tribunal civil em Assen, em primeira instância, havia decretado a dissolução da associação Martijn (Vereniging Martijn, na qual militava também um padre católico), fundada em 1982, observando que as suas propostas sobre o contacto sexual entre adultos e crianças eram contrárias às normas e aos valores da sociedade holandesa.

A associação Martijn defendia a possibilidade de consentimento e prazer mútuo nas relações sexuais entre adultos e crianças ou adolescentes e negava, como premissa básica, que elas sejam prejudiciais para os menores, contra o que considerava um "dogma" sem fundamento científico. Desde essa perspectiva, a associação defendia a aceitação social da pedofilia e a legalização das relações sexuais entre adultos e menores, sem limite de idade.

A Martijn propunha um código ético baseado em quatro regras que deveriam ser tidas en conta em todas as interacções com menores:
  • Consentimento, tanto da criança quanto do adulto.
  • Abertura para os pais da criança.
  • Liberdade para a criança de se retirar da relação em qualquer momento.
  • Harmonia com o desenvolvimento da criança.
A associação em 1994 tinha sido expulsa do Ilga, a International Lesbian and Gay Association. Presidente do Martijn era Marthijn Uittenbogaard, 41 anos, que em 2006 também fundou o Partido do amor fraterno, da liberdade, da diversidade (Pnvd), partido que proponha a redução da idade legal para actos sexuais, votações, jogo de azar e drogas leves de 16 para 12 anos.

O partido não foi capaz de concorrer às eleições porque não conseguiram reunir um número de assinaturas suficientes e foi dissolvida em 2010.

No início deste mês, O Tribunal de Apelação de Arnhem, Leeuwarden, decidiu que os textos e as fotografias presentes no site da associação não violam a lei, não sendo de natura explicita ou pornográfica/pedófila. E acrescentou que o facto de que alguns dos seus membros tenham sido condenados por crimes sexuais (o tesoureiro Ad van der Berg, em 2011, foi condenado a 3 anos de prisão por posse de pornografia infantil) não podia ser considerado representativo do trabalho e das finalidades do mesmo site.

Site que, de facto, não apresenta material pedófilo (e nem poderia: seria fechado de imediato) mas propagandista.

O tribunal considerou, no entanto, que as propostas para a liberalização da pedofilia são "uma grave violação de determinados princípios do sistema da justiça penal holandesa", em particular no que diz respeito à minimização dos "perigos do contacto sexual com pessoas jovens"; mas o tribunal têm decidido também que sociedade holandesa é suficientemente "forte" para enfrentar "as declarações e o comportamento indesejável e aberrante do grupo".

Resumindo, "os objectivos da associação são contrários à ordem pública, mas não há ameaças de desestabilização da sociedade". É claro que aqui o assunto é a pedofilia "consensual" (o que já por si não faz sentido) e não os abusos contra os menores.

"O povo que mais ordena"?

Como encarar um tal acórdão? É um discurso complicado.

Em primeiro lugar: a pedofilia na Holanda era e continua a ser um crime. Isto é o mais importante.
O que é permitido é divulgar ideias em favor da pedofilia. E aqui o assunto complica-se.

A seguir, é importante marcar uma posição clara: a pedofilia é uma doença e um crime.

Um adulto que sinta a necessidade de ter relacionamentos com crianças é evidentemente uma pessoa com problemas psíquicos, incapaz de manter uma relação com os próprios similares.
É também crime porque pressupõe a capacidade de livre escolha por parte de quem não tem os instrumentos para decidir no tal sentido: pensar que uma criança de 6 ou 7 anos possa livremente escolher de ter um relacionamento sexual significa negar a evidência e aproveitar-se da inocência (falta de conhecimento, gestão do próprio corpo, etc.) de quem ainda não atingiu a idade para efectuar tais escolhas.

Acho não ser possível ter dúvidas acerca disso. E neste sentido é difícil partilhar a visão do Tribunal, pois é claro que o assunto é delicado e mexe nas emoções. Todavia, vale a pena realçar um aspecto que a maior parte da internet preferiu ignorar.

O acórdão demonstra a capacidade absoluta dos holandeses de serem coerentes com a sua própria legislação. A decisão (que é susceptível de recurso), se dum lado condena sem apelo a pedofilia e as propostas delirantes do Vereniging Martijn, do outro realça a confiança do sistema holandês nos cidadãos: não é necessário assinar petições online ou insultar um povo civilizado que simplesmente está a gerir um caso espinhoso com seriedade, sem apoiar-se no machado do sentimento popular ou nas gritarias histéricas.

O Tribunal condena a pedofilia mas acha que a sociedade holandesa é perfeitamente capaz de isolar e rejeitar a anomalia, apoiada também por uma legislação que põe limites na difusão de material pedófilo e continua a condenar tal prática.

O Tribunal, portanto, afirma que o povo holandês não precisa duma babá que diga ao cidadão como comportar-se perante uma depravação: deixa que a depravação possa exprimir-se e confia nos cidadãos para que esta seja naturalmente anulada.

Podemos não gostar, sobretudo num caso como este no qual é envolvida uma forte componente emocional, dado o assunto delicado. Mas esta atitude tem um nome: liberdade.
O Tribunal holandês teria tido vida mais simples limitando-se a proibir a existência da associação pedófila: mas teve a coragem de permanecer no âmbito jurídico deixando as questões éticas nas mãos da sociedade.

Óbvio: é uma escolha esta que pressupõe uma sociedade evoluída, não aplicável em muitos outros casos (alguém consegue imaginar uma decisão deste tipo em Portugal? Em Italia, Espanha, Brasil?).

Mas vamos supor o pior dos cenários e o assunto pedofilia calha bem, pois, como já lembrado, é algo que mexe muito com as nossas emoções: imaginemos que a sociedade holandesa decida tornar-se o Paraíso dos pedófilos, com crianças que fazem sexo desde a creche. É um absurdo, óbvio, mas serve para a discussão.

Pergunta: mas se esta for a decisão da maioria, quem pode contrasta-la? Quem tem o direito de proibi-la? Em nome de quê? De conceitos religiosos ou morais? E porquê? E por quem? Não é a sociedade que estabelece a ética e a moral? Porque uma sociedade que aceite a pedofilia como prática normal tem que ser condenada?

Podemos não gostar, mas também a Democracia funciona assim: a maioria decide o que é justo e o que não, o que é permitido e o que não é permitido.

Como cantava Zeca Afonso em Grândola Vila Morena:
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
O povo, não o tribunal. Eis a questão: até a que ponto uma sociedade precisa duma entidade "superior" que decida por ela e quando, pelo contrário, a sociedade é suficientemente adulta para rejeitar de forma natural o que é anormal.

A diferença não é mínima: uma entidade "superior" implica o perigo de tornar-se uma elite, que conduz a sociedade sem ter em conta os reais desejos desta. É a situação na qual se encontra a maior parte dos Países. É o mesmo princípio segundo o qual é necessária a presença de pessoas "iluminadas" que possam dirigir os destinos dum País, pois o cidadão comum não tem capacidade/preparação para esta tarefa.

As pessoas que criticam o acórdão do Tribunal holandês:
  • não acreditam que a sociedade tenha a capacidade de defender-se
  • acreditam na necessidade duma "entidade superior" (o Tribunal não é eleito mas nomeado) que substitua a sociedade civil na defesa dos valores e da ética.  
Depois ficamos espantados se a nossa sociedade for ainda o que for. Estamos perante uma questão de desenvolvimento: a nossa sociedade, na maioria dos casos, não tem de si uma visão "crescida" mas ainda dependente dum conjunto de estruturas e super-estruturas que determinem qual o nosso caminho. É uma visão que ainda tem muito do antigo relacionamento entre Rei e Povo, uma espécie de monarquia constitucional. A decisão do Tribunal holandês escolhe a direcção contrária: a última palavra é da sociedade.
  
Em qualquer caso, fiquem descansados: a Holanda é suficientemente adulta para rejeitar a aberração definida "pedofilia".

O que acham os Leitores?

(nota: dado que já estou a imaginar comentários anónimos delirantes, repito: 1. fala-se aqui de pedofilia consensual, não de abusos 2. Este blog (e com ele o autor) é contrário à pedofilia, seja ela de qualquer tipo (consensual ou não) 3. comentários ofensivos serão simplesmente apagados sem mais)


Ipse dixit.

Fontes: Corriere della Sera, La Stampa, Wikipedia (versão inglesa)
http://informacaoincorrecta.blogspot.com.br/ 




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