O Brasil está na marca do penalty: aumentos de taxas de juros ou de desemprego, e/ou redução da demanda doméstica, podem nos colocar em um caminho complicado
Rogerio Studart
A esta altura do campeonato, estamos já escaldados com as análises de que “o mundo está emergindo da crise”, mas poucos arriscam dizer que podemos ter momentos ainda piores no futuro. Não o Centro Internacional de Estudos Monetários e Bancários (CEPR) de Genebra: um recente relatório do CEPR aponta para o preocupante crescimento da dívida na economia global, e para os riscos de um aprofundamento da crise, caso as autoridades nacionais resolvam adotar políticas monetárias mais conservadoras. Os riscos suscitados pelo relatório se inserem perfeitamente no atual debate sobre o futuro da política monetária nos Estados Unidos e na Europa, mas têm consequências importantes para as economias emergentes — e em especial para o Brasil. É o que veremos.
O estudo em questão (“Deleveraging? What deleveraging?”) apresenta dados impressionantes sobre o crescimento da dívida global. Em média, a relação entre dívida e PIB saltou de aproximadamente 160% para cerca 210% em 2013. Foram as economias desenvolvidas que tiveram o maior crescimento até 2008. Porém, foi nas emergentes (especialmente na China) aonde mais rapidamente ampliou-se o grau de endividamento desde então. A composição da dívida também se distingue muito entre economias avançadas e emergentes, como resultados das diferentes políticas anticíclicas adotadas. Nas economias avançadas, optou-se por políticas monetárias frouxas e não convencionais, voltadas ao mesmo tempo para sanear os balanços patrimoniais das instituições financeiras e incentivar a retomada do crédito — que murchou no começo da crise. Por essa razão, grande parte do endividamento se concentrou em títulos públicos — especialmente aqueles emitidos pelas autoridades monetárias. Nas economias emergentes, a expansão da dívida se deu basicamente através de empréstimos domésticos — seja através de bancos públicos, como foi o caso do Brasil; seja através das instituições que compõem o chamado “sistema bancário sombra”, como na China.
Seja qual tenha sido a origem da expansão da alavancagem financeira, o relatório procura mostrar que essa situação de alto endividamento apresenta riscos para a economia global. Por um lado, há o risco de que qualquer retomada do crescimento seja restringida pela capacidade de endividamento do setor público e privado, o que implica a possibilidade de estarmos condenados a um baixo crescimento por muitos anos. O outro risco se relaciona a possíveis surtos de instabilidade financeira, que se tornam mais elevados em situações de deflação de preços — o que aumenta ainda mais o risco de inadimplência — ou de elevação das taxas de juros pelas autoridades monetárias.
O relatório se insere perfeitamente no atual debate sobre o futuro da política monetária nos Estados Unidos e na Europa. Nos Estados Unidos, por exemplo, o banco central (Fed) já anunciou há muito o fim da política não convencional de compra de títulos privados — o chamado Quantitative Easing , ou QE. A pressão agora é para que o Fed já em princípio do próximo ano eleve a taxa de juros básicos, a um patamar real positivo — já que no momento é negativo, se considerarmos a inflação. Alegam os defensores desta política que a recuperação do mercado de trabalho já é suficientemente robusta, e que caso se insista em uma política expansionista, os riscos de pressão inflacionária aumentariam consideravelmente. Enquanto o Fed resiste aos apelos conservadores, na Europa o Banco Central Europeu (BCE) já demonstra arrependimento de não ter utilizado algum tipo de QE para combater a perda de dinâmica das economias regionais — já que até mesmo a Alemanha tem apresentado resultados decepcionantes de crescimento econômico e de criação de empregos. Para os autores do relatório, o tema vai além do crescimento: dado elevado grau de endividamento nas economias avançadas, aumentos das taxas de juros podem produzir surtos de instabilidade financeira, com efeitos em cadeia sobre balanços patrimoniais — ou, para utilizar uma expressão acadêmica que se tornou popular nos últimos anos, uma crise tipicamente minskiana.
O risco de uma crise financeira em economias emergentes neste momento pode ainda ser mais significativo. Por exemplo, na China, significativa parte da expansão do endividamento se localizou no sistema bancário “sombra”. Por não ser regulado, por um lado não há dados precisos para avaliar o grau de fragilidade financeira que prevalece naquele país; por outro, como estes empréstimos não são garantidos, o risco de surtos de instabilidade levarem a crises efetivas aumenta muito. O que mitiga esse risco é o fato de a China ainda ter um crescimento muito significativo, que implica também baixas taxas de desemprego e nível de demanda alto. Essa é mais uma razão para as autoridades chinesas demonstrarem uma preocupação crescente com possíveis perdas de dinamismo no mercado de trabalho — e porque nem sequer sonham em aumentar suas baixíssimas taxas de juros.
Dentro desse quadro global, o Brasil não deixa de ser privilegiado. O aumento recente das taxas de juros tem tido efeitos não desprezíveis sobre o peso dos pagamentos de dívida — tanto do setor público quanto das empresas e famílias. Entretanto, nossa taxa de desemprego tem se reduzido sistematicamente, a demanda doméstica tem demonstrado resiliência e nosso sistema bancário (privado e público) é bem capitalizado e bem regulado. Enquanto prevalecer esse quadro macroeconômico, mesmo em um contexto de baixo crescimento, é possível pensar-se em um processo controlado de redução do endividamento público e privado. Mas estamos na marca do penalty: aumentos significativos de taxas de juros ou do desemprego, e/ou redução da demanda doméstica, podem nos colocar em um caminho também complicado.
Brasil Econômico