Cozinha de restaurante em tempos de crise
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Cozinha de restaurante em tempos de crise


Os tempos bicudos estão obrigando os chefs a buscar saídas usando a criatividade; a cozinha que surge da crise traz ótimas surpresas nos cardápios paulistanos.



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                       Fígado de boi virou atração


A crise econômica bateu mais forte na porta da cozinha dos restaurantes e tem obrigado os chefs a sair da mesmice. Dois anos após renovarem o salão, tirando toalhas e guardanapos de tecido, tendência que foi registrada em março de 2014 pelo Paladar, muitas casas estão se voltando aos produtos, de olho em trocas e substituições que combinam com os tempos de menos dinheiro no bolso.

É assim que sai o carré de cordeiro e entra o pescoço do bicho; o aspargo abre espaço para o talo de taioba. E, com robalo e salmão mais caros, entram em cena a tainha, a sororoca e a prejereba. O restaurante ganha reduzindo custos e o cliente lucra com essa criatividade acentuada, conhecendo novos ingredientes e podendo replicar as receitas em casa com produtos ao seu alcance. Afinal, a necessidade é a mãe da criatividade, no maior dos clichês.

De olho nesse movimento, a chef Mara Salles lançou, na quarta-feira, 4, o Breviário do Não Desperdício, uma cartilha de receitas para driblar a crise. No seu Tordesilhas, os ensinamentos do livrinho foram transformados em um menu de sete etapas, batizado de Virados e Mexidos, servido até este sábado, 7, no jantar (R$ 95 por pessoa). 

“As pessoas compram magret, foie gras e coxa de pato, mas e o resto do bicho?”, questiona Mara, que transformou em belos pratos a asa do pato cozida, a língua de boi fatiada fininha e o pescoço de cordeiro cozido com mandioca, itens em geral desprezados nos açougues e, por isso, mais baratos – o quilo da asinha do pato sai por R$ 16, por exemplo.

Mara não é a única que está fazendo trocas. Em outros restaurantes da cidade, o movimento tem sido o mesmo. Há um mês o francês Alain Poletto tirou o carré de cordeiro do menu do Bistrot de Paris. Do animal, ele manteve um corte dianteiro mais barato, que usa para fazer ragu. O carré custava cerca de R$ 80, o ragu sai a R$ 50. “Todo mundo está sentindo a crise. Não é o momento de aumentar os preços, porque ninguém vai pagar.”

Com as contas também na ponta do lápis, Renata Vanzetto andou mexendo no menu do Ema. Ela conta que a sobrecoxa de pato ficou muito cara (cerca de R$ 90 o quilo) e, assim, passou a usar cupim para acompanhar o purê cremoso de queijo. Ela também deixou de fora do menu-degustação os picles de aspargos – substituiu o vegetal pelo talo da taioba. “Uso a folha em outros preparos e jogava o talo no lixo. Daí experimentei fazer um picles. Ficou bem bom, as pessoas gostaram.”

O aspargo também está em baixa na cozinha do Chef Vivi. A dona da casa, Viviane Gonçalves, servia o vegetal tostado como entrada com molho de parmesão. Era um clássico. “Foi muito chocante tirá-los da minha cozinha, porque eu usava muito. Mas não vou vender nunca uma salada por R$ 50.” No lugar dos aspargos, agora serve repolho tostado (com o maçarico) e o mesmo molho.

Os chefs contam que o grande desafio é fazer as mudanças sem deixar a qualidade cair. Mas acham instigante. “Estamos saindo da zona de conforto, tendo que ser mais criativos”, diz Viviane. Passa também pela economia a decisão de reduzir o número de pratos, já que a logística da compra e a manutenção do estoque, com água e luz, influenciam nos altos custos de um restaurante. 

Fábio Vieira, do Micaela, está reduzindo cerca de 30% do tamanho do menu e também fazendo substituições. Servia um pastel de jamón com queijo manchego, ambos importados, mas o queijo dobrou de preço. Como ele não queria ficar sem pastel, passou a servir uma versão com gema de ovo perfeito, cremoso assim como o manchego, com farofa de torresmo por fora, no lugar do jamón. 

Pelo mesmo preço de antes (R$ 29 a porção), agora consegue uma margem melhor de lucro na receita. “Mesmo nós, os cozinheiros, temos de saber quanto cada prato está contribuindo para as finanças.”

Sem essa de peixe nobre e peixe pobre

Os peixes viraram um assunto à parte nas cozinhas profissionais. Não se trata de substituir um corte traseiro por um dianteiro ou por miúdos, como no caso do boi ou do cordeiro. Mas, sim, trocar um peixe por outro. 

Robalo, salmão, garoupa, atum, todos estão muito caros na visão dos chefs, que já foram atrás de substitutos – o salmão, cuja maior parte é importada do Chile, dobrou de preço nos últimos quatro meses.

O atum era onipresente no Ema desde a abertura, em 2014, até que na semana passada Renata Vanzetto o tirou do cardápio pela primeira vez. “Chegou a R$ 85 o quilo. Eu não ia comprar de jeito nenhum.” Trocou por lula. A compota de tomates que acompanhava o namorado agora escolta o carapau. “As pessoas torcem o nariz, mas é puro preconceito. Também fiz porquinho empanado – custa R$ 5 o quilo, é o peixe mais barato, todo mundo amou.”

Tentar convencer clientes a comprar peixes menos conhecidos é a luta diária de Cauê Tessuto, d’A Peixaria. “Você diz que o robalo está congelado e esse outro de nome prejereba está fresco e o pescador recebeu bem por ele, mas ele continua querendo o robalo.” Com a crise, no entanto, Cauê tem sentido maior flexibilidade da clientela – enquanto o robalo do litoral paulista custa R$ 70 (o quilo, peixe inteiro), a corvina marisqueira é vendida por R$ 30.

Além de vender peixes diretamente ao cliente, Cauê atende restaurantes e conta com a ajuda dos chefs para convencer as pessoas a ousar. No Chef Vivi, Viviane Gonçalves deixou de lado atum e robalo e trabalha agora mais com tainha e sororoca.

No japonês Sakagura A1, Shin Koike trocou parte do salmão por olho de boi, beijupirá e meca. “São igualmente gordos e ficam bem em vários preparos.”

Cauê Tessuto está otimista: “O público vai se adaptar, vai sair da mesmice. Mesmo depois de a recessão passar, acho que as pessoas vão continuar comendo essas coisas novas.”

No bar, bebida nacional vira estrela

As bebidas não ficaram de fora dessa conta cada vez mais apertada. No NOH Bar, conhecido por coquetelaria autoral, algumas garrafas foram trocadas. É o caso do licor Green Chartreuse – o preço da garrafa foi de R$ 150 para cerca de R$ 250. E o drinque iria de R$ 32 para uns R$ 45. “Não dá para cobrar isso, o cliente se sente ofendido, além de não termos margem de faturamento”, diz o sócio Pablo Moya, que também cortou o vermute Carpano Antica Formula. No lugar, usa uma linha inferior da marca, o Carpano Classico. “Se eu te vender um negroni a R$ 50, você vai achar que eu estou te roubando.” 

O resultado é que, em tempos de dólar alto, a bebida nacional vira protagonista: cachaça, rum e saquê, bebidas mais baratas e que não eram tão frequentes na carta, agora aparecem mais.

Ali, até os copos foram afetados na faxina da crise – antes eram cerca de 30 tipos para os variados coquetéis; hoje são oito. Um exemplo é o drinque Mint Chocolate Negroni – era montado numa taça de cobre termocondutora que saía por R$ 55 e agora vai num copo de vidro que custa menos de R$ 20.

“Não acho que uma ação só resolva, mas muitas pequenas ações. Agora vou toda semana ao Ceasa garimpar insumos, sai mais barato do que o hortifrúti me entregar aqui. Estou até estudando delivery de coquetéis”, diz Pablo.




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