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Cuidado: a bruxa está convencendo crianças a comerem mal
Estudo sugere que publicidade infantil faz crianças comerem mais açúcar e gordura. Depois de ver uma propaganda de comida calórica, as crianças comem – ou querem comer – mais desse tipo de alimento. Como contornar essa influência? Essa é uma indagação publicada em reportagem pela revista Época desta semana. Com ela, iniciaremos uma fase no Qsacada para ajudar gente grande e gente pequena a comer bem e melhor.
É muito fácil convencer uma criança a comer mal. O professor Bradley Johnston descobriu isso ao vê-las assistir à televisão. Johnston é um pediatra jovem e professor da Universidade de Toronto, no Canadá. Estava preocupado com o aumento da cintura de seus pacientes – no país, 5% das crianças eram obesas em 1979. Em 2013, o problema afetava 13% delas. E Johnston queria saber por que, num espaço de poucas décadas, elas haviam ganhado tanto peso e se interessado tanto por comida calórica e pobre em nutrientes.
A explicação envolvia múltiplos fatores, e Johston estava a par disso. Mas queria entender o papel de um fenômeno em especial: o da publicidade de alimentos. “Ao menos no Canadá, há estimativas de que as crianças sejam expostas a cinco propagandas por hora”, disse ele por telefone a ÉPOCA, enquanto erguia o tom da voz para denotar surpresa. “E 80% dessas propagandas promovem comida calórica. Imagine como isso afeta a psique infantil.”
O debate sobre o papel da publicidade nas escolhas alimentares das crianças é acalorado. É difícil estabelecer, com clareza, o que leva uma pessoa a consumir determinado produto e se uma campanha de marketing bem-feita basta para aumentar as calorias que ingerimos. Para pintar um cenário abrangente, Johnston e seus colegas recorreram a uma importante estratégia científica: em lugar de realizar novos experimentos, fizeram uma revisão dos estudos já disponíveis. No total, os dados avaliados por ele envolveram 5.814 crianças com, em média, 8 anos de idade. A maioria da América do Norte e da Europa.
Os estudos revisados por Johnston se dividiam em dois tipos – um grupo queria entender se a publicidade interferia nas preferências nutricionais das crianças. O outro queria entender o impacto do marketing de alimentos no consumo de calorias. Todos seguiam roteiro parecido: primeiro, um grupo de crianças assistia a anúncios de alimentos industrializados, ricos em gordura, sal e açúcar. As propagandas vinham na forma de comercias de TV, anúncios em revistas ou posicionados em videogames. O tempo de exposição das crianças aos anúncios era de, em média, três minutos e 48 segundos. Um segundo grupo de crianças, o grupo de controle, era poupado dessas intervenções.
Sobrepeso e obesidade atingem crianças e adolescentes cada vez mais cedo
Na segunda etapa, os pesquisadores mostravam comida in natura – frutas frescas, por exemplo – e alimentos processados às crianças, ou deixavam-nas comer alimentos dispostos diante delas. Aquelas expostas a propagandas tinham maior tendência a escolher os alimentos pobres em nutrientes. Menos de cinco minutos de comerciais bastavam para que, nos 15 minutos seguintes, elas consumissem 30 kcal a mais do que as crianças que não receberam o estímulo publicitário.
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O trabalho de Johnston, publicado no periódico científico Obesity Reviews, é o maior do gênero já realizado. Ao avaliar os resultados de diferentes estudos, espera-se que tenha minimizado possíveis falhas de trabalhos individuais. Por isso, é convincente. Ele queria que fosse ainda mais ambicioso: “Nós só conseguimos avaliar os efeitos das propagandas durante um espaço de tempo curto, logo depois de a criança ver o anúncio”, diz. Seu desejo é descobrir se existe efeito cumulativo – e se essas estratégias de marketing interferem nos hábitos alimentares a longo prazo.
O efeito do movimento para as crianças
O trabalho também lembra, ainda que de maneira não explícita, o papel dos pais na definição da dieta dos filhos. Apesar da propaganda, a criança só comerá mal se o alimento ruim estiver a seu alcance. E, nas casas onde há dinheiro para comprar esses artigos, eles costumam estar. “Nem sempre os pais sabem o que é comida saudável’, diz Johnston. A vida corrida nas grandes cidades torna grande o apelo por comida processada, gorda e saborosa. Ao tentar navegar pelas muitas opções nas prateleiras dos supermercados, os pais podem cometer deslizes. “Muitos pais compram barrinhas de cereal, porque o rótulo diz que elas são saudáveis”, diz Johnston. O problema é que muitas delas vêm carregadas de açúcar e sódio. Esses passos mal dados na dieta dos filhos não são privilégio dos pais canadenses com os quais Johnston convive. Algo parecido acontece no Brasil. “Se a propaganda diz que um iogurte ‘vale por um bifinho’, por que eu vou me preocupar se meus filhos querem comer mais desse doce?”, diz o economista Walter Belik, professor da Universidade de Campinas (Unicamp) e especialista em segurança alimentar.
E se a gordura fizer bem?
O estudo canadense não envolveu crianças brasileiras, mas levantamentos feitos por aqui indicaram que o comportamento delas segue pela mesma linha. Em 2010, o professor Sebastião Almeida, da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, trabalhou com dois grupos de 30 crianças, entre 8 e 13 anos, recrutadas em uma escola particular da cidade. Um dos grupos foi posto para ver um desenho animado entremeado de propagandas de brinquedo. O outro viu o desenho acompanhado por comerciais de alimentos. Imediatamente depois, os pesquisadores mostraram fotos de comidas naturais e processadas às crianças e perguntaram o que elas gostariam de comer. Os alimentos processados foram mais frequentes nas escolhas das crianças que assistiram às propagandas de comida. “As crianças são facilmente influenciáveis”, diz Almeida. Isso preocupa porque, apesar de não ter dinheiro para comprar a própria comida, elas têm grande influência na hora de definir o que as famílias vão levar para a mesa: “Alguns pais tentam compensar sua ausência atendendo aos caprichos das crianças. E eles também consomem esses alimentos”.
Ao longo dos últimos anos, governos do mundo inteiro tentaram adotar estratégias para reduzir a influência das propagandas de alimentos nas escolhas alimentares de suas populações. Sobretudo, sobre os mais jovens – em países escandinavos, como a Suécia, a propaganda voltada para crianças é proibida nos canais de televisão. Trate ela de alimentos ou não. No Reino Unido, estão desautorizados os anúncios de alimentos pensados para menores de 16 anos. Por lá, as empresas também não podem usar mascotes ao promover alimentos. Em 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu tratar da questão ao publicar uma recomendação de que os governos limitassem propagandas de alimentos calóricos direcionadas a crianças. O guia alimentar brasileiro de 2014 segue uma direção parecida ao apontar que a propaganda de comida ruim interfere negativamente na mesa do brasileiro.
No Brasil, sobretudo a partir dos anos 2000, aumentou a pressão de organizações da sociedade civil contra esse tipo de anúncio. Por aqui, a legislação é aberta à interpretação ampla. Publicidade voltada ao público infantil não é proibida, mas o Código de Defesa do Consumidor, um documento de 1990, prevê que ela pode ser considerada abusiva – nos casos em que se aproveitar da “deficiência de julgamento da criança”. Nos últimos 25 anos, a lei garantiu que fossem coibidas propagandas em que o abuso era evidente, quer elas anunciassem comida ou não: “Houve, na década de 1990, um comercial que instigava a criança a destruir os próprios tênis para ganhar sapatos novos”, diz Isabella Henriques, uma das diretoras do Instituto Alana, uma instituição que trabalha pela proteção dos direitos das crianças. A Justiça decidiu tirá-la do ar. Era um caso de abuso flagrante. “Mas há casos mais sutis”, diz Isabella.
Em 2008, uma empresa alimentícia promoveu uma promoção que daria um relógio infantil a quem comprasse cinco pacotinhos de um biscoito da marca. O caso foi levado à Justiça e, em março deste ano, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) considerou a estratégia abusiva. De acordo com os juízes, o anúncio incorria em dois erros: era abusivo porque configurava venda casada, proibida no Brasil; e era abusivo porque era direcionado às crianças. Esse último fator tornou o julgamento inédito: “A decisão do STJ é importante porque diz que a publicidade é abusiva simplesmente porque se dirigiu ao público infantil”, diz Isabella. O veredicto pode se tornar modelo para outros julgamentos semelhantes e denota disposição da Justiça brasileira em ser mais severa com o setor.
É um avanço, com potencial para afetar o setor de saúde: “Há estudos que preveem que, se baníssemos as propagandas de comida pouco saudável, o sobrepeso entre crianças cairia algo em torno de 18%”, diz Johnston, o pesquisador canadense. Ele sabe que esse esforço não basta para resolver o problema: “A publicidade é apenas um fator, eu sei. Mas é um fator sobre o qual podemos assumir o controle”.
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